Missão na Nigéria

Todo dia eu volto à África.

Hoje meus pensamentos voaram até a cidade de Okon-Eket, cheia de vilarejos paupérrimos e pouco acessíveis. Foi lá que “fizemos tudo errado”, ou ao menos, tudo diferente do que já estávamos pré-determinados a executar naquela que era a fase final da expedição. Fase na qual o grupo visitava o “bicho” sem ser convidado, dentro da casa dele, em vilas, igrejas e lares.


Nessa altura, nós não dávamos mais conta do sol, do suor, do sono e nem de quem somos. Aculturamo-nos. Infiltrados, andávamos com a nossa lucidez misturada à “maluquês” devido ao ritmo alucinante com que as coisas aconteciam. Hoje percebo que nos esquecemos do tempo e o tempo se esqueceu de passar. Sempre que o Absurdo determina a ordem do dia, a sensação é de estar numa viagem para fora da própria existência, como num sonho, vivendo um processo atemporal, um parêntese cronológico tomado de um conteúdo todo surreal, ilógico, irracional e inconcebível. Contudo, nada nos demovia da certeza em Deus de que tudo, o tempo todo, ia dar certo! Agora que eu analiso essa fase, suponho que a coleção de batalhas vencidas nas primeiras semanas talvez estivesse, finalmente, nos automatizando. Já não havia tanto mistério no fenômeno todo. As personagens eram as mesmas: pastores-bruxos, crianças-bruxas, “jesus” pró-bruxaria, Jesus anti-bruxaria; e finalmente o mesmo desfecho: a vedação de uma rachadura na parede espiritual de algum vilarejo ou família visitada. Era isso. Era assim. Graças a Deus! Chega, então, mais um dia. Não lembro qual. Mas lembro que o Clayton, o Cesar e o William se revezavam entre as casas de um bairro e a Tenda do Caminho montada numa praça de alta circulação. Jojo tomou a câmera de vídeo e o Leonardo Lepsch, sua super-máquina fotográfica para nos seguir a uma incursão. Lá fomos eu e o Leo para o dia que o “script” foi diferente dos “roteiros programados”. Eis a Missão: Buscar uma criança de nove aninhos que estava em pleno processo de “tratamento espiritual”: trancafiado numa igreja há quase três meses, passando por sessões e mais sessões de “libertação” com direito a rituais macabros, o menino fora estigmatizado pelos próprios parentes, que se mantinham submetidos ao pagamento mensal da “internação” do pequenino até que o mesmo tivesse “alta” e pudesse voltar a sua vidinha em casa. Essa era a “ficha”! Até onde o carro conseguiu chegar, fui orando, sob o vento quente de sempre, para que uma verdadeira operação de resgate fosse instituída, por força do Espírito! Pedi que a ação estilo “pombo-serpente” dos dias anteriores prevalecesse em cada um de nós também nessa manhã. Daí, fechei meus olhos. Concebi na minha mente que em poucas horas eu teria a criança em meu colo, dentro daquele mesmo carro. Eu não a conhecia, mas já a amava. Eu nem a tinha visto, mas ela já era minha! Minha. Entretanto, voltei para a cidade com os olhos cheios de vazio, envidraçados... Voltei fitando o nada, até ser finalmente distraído por um verme, uma espécie de larva, um sei lá o quê era aquilo que estava andando na minha calça fabricada em Gana. Voltei sem criança nenhuma. E aquela “minhoca” só podia estar tirando sarro de mim, “sentada” na perna que guardei para trazer salvo o menino! Desgraçada...

***
Eh! Tem dia que a gente se sente um verme mesmo! Mas vocês fariam diferente? Fariam como, então? Vejam: O carro ficou onde a estrada acabou. Estão construindo um novo caminho. Fomos atolando os pés, até a igreja-prá-lá-do-fim-do-mundo! Apareceu um barraco todo torto feito de madeira e concreto e enfiado em meio às árvores de copas altas. Era a igreja do sequestrador. O lugar não tinha nome, nem placa, nem chão, nem teto, só umas telhas cobrindo quase metade do “salão”. Uma porta que não fechava direito escondia o interior da “construção”, que fácil se fazia aparecer por suas brechas. Vi que estava cheia de cadeiras, um altar à frente e uma mesa aos pés da qual algumas mulheres mantinham-se agarradas. Era uma igreja sim. Era ali. Uma jovem senhora veio nos receber vinda da casa ao fundo do “templo”. Acanhada pela surpresa da “visita-branca”, ela parecia meio tensa. Avisamos que viemos em paz para conversar sobre uma criança que a Stepping Stones Nigeria denunciara que estava “internada” nesse endereço. A moça era a esposa do pastor. Pedimos para falar com ele, e ela, prontamente foi procurá-lo. Enquanto esperávamos, vimos a Diana, da ONG inglesa, agarrada a um pequenino. Ela reconheceu o FAVOR! Sim, esse era o nome dele! Nome inglês, que se pronuncia feivor. Favor, o “menino-bruxo”, estava vestido sem as roupas em farrapos da maioria das crianças. No rosto, também não tinha as expressões sem expressão dos pequenos que, aos montões, viviam feitas zumbis do estigma, sindrômicos. Ao contrário, esse mocinho tinha o olhar até cheio de contentamento. Apresentamo-nos, e ele se curvava com elegância, sendo seguido por alguns bebês, crianças peladinhas e barrigudas que, assustadas conosco, mantinham-se agarradas à mão do jovenzinho cuidadoso. O pastor estava no campo, mexendo na terra. Chegou pingando de suor. Esbaforido e introvertido, nos cumprimentou: Sou Samuel! Sua mulher lhe trouxe rápido uma camisa de botão e fomos convidados a conversar. Entramos no “templo” e propus sentarmos em círculo para dar lugar ao Mfon, nosso motorista.

Missão na Nigéria

A cada visita percebíamos sua crescente atenção as nossas palavras. O Mfon é um negro enorme que chorou quando o Clayton lhe presenteou com a camisa do Santos que o Robinho vestiu. (Mas, não se enganem com o Mfon... Ele tentou arrancar a orelha de cada oponente que encontrávamos!). Quase sem perceber ele já transitara da assistência neutra e profissional para aquele estado onde as coisas não são mais feitas por dinheiro, mas pelo gosto, pela amizade e agora, pela Causa, que se tornaria a sua própria! O Mfon já estava na roda. Naquela roda e na roda viva da Vida com Cristo!
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O Leo apresentou o “Way to the Nation” ao pastor Samuel e falou da Missão “Pequeninos na Nigéria”. Enquanto isso, fiquei olhando os quadros de Jesus olhando prá nós. Tinha Jesus católico, Jesus ocidental, Jesus inglês... As mulheres ao chão estavam deitadas junto ao altar, e suas crianças, os bebês que o Favor trazia, as rodeavam. O pastor disse que elas estavam ali jejuando por causa de seus muitos sofrimentos e carências.
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Olhamos, deu muita pena, mas queríamos a história que fomos buscar.

Favor, nove anos.

Seus pais morreram. A vila acusou o menininho e o expulsou. Seu tio o recolheu, mas não queria cuidar dele, não queria o “estorvo”. Então, o levou ao pastor. O casal de pastores praticamente adotou a criança. Nos olhos da mulher vi muito amor e nenhum medo ou culpa, muito diferente dos rostos que mal levantavam a cabeça para nos encarar. Eu disse a ela: “Será que com um olhar tão bom, vocês podem estar fazendo mal a esse pequenino de Jesus?” Ela só meneou a cabeça, negativando a questão. Pedi para que o Mfon nos desse uma noção em dólares do valor mensal que o tio deixava lá. Era uma esmola. Pensão de quem não ama mais. Quantia irrisória. Triste. Por outro lado, o pastor se dizia feliz porque, apesar de tudo, naquela semana ele tinha conseguido uma difícil vitória: colocar o menino numa escola!
Missão na Nigéria

Rimos todos juntos de gratidão.

Que cena estranha: Nós, o pastor-bruxo, sua meiga esposa, a criança estigmatizada e FAVORecida naquele cenário coberto de símbolos cristãos, mas repleto de prática pagã. E nós ali, irmanados todos.

De repente, lembrei-me de que eu era um “soldado” e cortei a diplomacia. Em português, combinei com o Leonardo que não teríamos pena do moço e confrontaríamos suas práticas. E passo a passo, repreendendo-o com brandura, fomos instruindo-o nas Escrituras sobre tudo que se mostrava equivocado na crença dele.
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“Está vendo esse Jesus aí na parede? Então, pastor, vamos mostrar na sua própria Bíblia o que Ele pensa sobre crianças.” E passamos a recitar em alta voz os versos onde Jesus abençoa crianças. Ele não abençoou somente crianças especiais feito Sansão ou João, anunciados por anjos; e nem somente crianças muito amadas e consagradas na infância, como Samuel ou José do Egito. Não. Jesus abençoou todas as crianças a ele apresentadas. Assim como a Cruz é sobre toda a humanidade; as mãos de Jesus continuam impostas sobre os pequeninos, apesar de seus discípulos continuarem a obstruir o Caminho dos meninos!

Acrescentamos que Cristo se mostrara indignado quando o assunto era criança e o abuso, constrangimento ou embaraço delas: Repreendeu os discípulos-trapalhãos; porteiros do Reino. Exortou os que, intencionalmente, faziam tropeçar e cair algum inocente pequenino, na fé ou na idade. Sugeriu-lhes que se atirassem ao mar sob o peso de pedra de suas culpas antes de sufocar uma criança, bem como garantiu recompensa a quem recebesse qualquer um deles, matando a sede dos que os representam na Terra. Avisou-lhes, ainda, que o REINO era das crianças e de quem se apresentasse como uma delas! Revidou, de igual modo, a provocação dos fariseus no Templo, quando questionaram a bagunça musical ao redor dele (“Bendito o que vem em nome do Senhor!”), assegurando que o perfeito louvor só pode sair da boca de pequeninos de colo e mesmo dos que ainda mamam! Jesus foi ainda mais longe. A gente O percebe se “orgulhando” de que o Pai tenha escondido seus mistérios dos sábios anciãos, e revelado aos pequeninos de coração, as crianças de alma!

O pastor só ouvia e concordava com a cabeça. Devolvi a Bíblia e lhe perguntei:

- “Como essa criança que tem um anjo constantemente diante da face do Pai que está nos céus pode ter nela incorporado um espírito de feitiçaria?”

Ele só calava. “Hein, pastor? Tell us, please...”. Nada.

O Leonardo queria explicações sobre o ritual de libertação. O pastor balbuciou uma resposta envergonhada, mas o Leo entendeu que ele orava e... “pingava”... “pingava”... Não disse o quê e nem onde...
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Então, olhando ainda para o Samuel, pedi ao menino Favor que viesse a mim. Eu o sondei e revirei de todo lado, procurando nele alguma marca, mancha, qualquer coisa... O pastor também havia dito que durante o tratamento a criança tinha que dormir de modo a não se mexer, pois quando o seu espírito saia por aí para aprontar bruxarias precisava ter o corpinho do menino na mesma posição para sua “re-entrada”. Pensei na hora: Esse menino dorme amarrado! Examinei seus braços, mãos, punhos, pés... Uma perícia. Não encontrei nada.

-“Feivor, você é feliz aqui?” – Eu perguntei, tendo-o de pé junto a mim.
- “Sim!”
- “Você quer voltar para casa?”
- “Não!”
-“Por que não?”
-“Porque eu gosto deles”, ele afirmou olhando para o casal com ternura. “Essa é minha família”.
-“Você está feliz na escola? Gosta de ir para lá?”
-“Sim, muito!”
-“Você é um bruxo? Você sente que é um bruxo?”
-“Não”
-“Você promete que não vai deixar ninguém fazer você acreditar que é um bruxo?”
-“Sim”
-“Você sabe que Jesus te ama como filhinho dele?”
-“Sim”
- “Você tem medo de Jesus?”
-“Não”.
-“Pastor Samuel, olhe para mim!”


(Bom, confesso que a entrevista com o menino-todo-cheio-de-graça me amoleceu)

Com a mão no ombro pastoral completei: “Irmão, Jesus nunca praticou nenhum ritual de libertação. Ele impunha as mãos, abençoava e pronto! Então, hoje acabaram seus rituais aqui, pastor. Não precisa mais. Você já fez o que pôde. De hoje em diante, você vai fazer assim...”

Então, coloquei minhas mãos sobre a cabeça do menino e orei: ‘Favor, você está livre de todo o mal. O diabo não pode usar você! Você é um favor imerecido a esse mundo e já foi abençoado por Jesus! Amém!’

Pedi ao Leonardo que, impondo as mãos, orasse pelo Samuel e sua esposa, por aquele lugar de sofrimento, dor e cinzas! O Leo orava e com a mão no peito dele, eu senti quando o pastor fibrilou, gemeu por dentro, deixou escapar um tranco de dor. Abri meus olhos e o vi chorando.

Chorou... Acho que ninguém nunca o tinha abençoado, tocado, exortado... Outra criança abandonada.
***

Estávamos indo embora e observei o Mfon sentado num canto, com cara de pranto.

“What´s matter, Mfon?”
“Eu ia pedir para falar, Marcelo, mas preferi calar” – ele dizia, agoniado.
“Então me fala, meu irmão...”
“É que eu penso que, pelo que vocês têm lido na Bíblia sobre Jesus, bastava que eles só fizessem como ela manda fazer e mais nada? Por que ele tem a Bíblia se não usa?”


Só lamentei. Não respondi. Era a hora e o tempo dele. Era seu encontro. O Mfon não estava percebendo, mas já fazia alguns dias que ele não era mais só nosso motorista, pois seu coração estava sendo dirigido pelo Evangelho! Sem heranças religiosas, tudo aquilo era muito confuso para quem estava percebendo que Deus é Amor!

Fomos embora, passando em meio a uns matos altos... O pastor nos acompanhou e ao chegar ao carro, eu não sabia se o abraçava ou se o ameaçava!

O Leonardo fez as duas coisas, e no ouvido dele disse com gravidade: “Eu sei que foi sangue o que você pingou nos olhos dele, sei que você pingou seu próprio sangue nos ouvidos dele; e se você tornar a fazer isso, eu também vou saber! Você está proibido de fazer isso em nome de Jesus! Amém, meu irmão?”
“Amém! Sim, Senhor!”
***

Entramos no carro e nos distanciamos daquele lugar onde o caminho ainda estava sendo construído... Quando lancei pela janela o vermezinho, aquela larva que estava em minha perna, pensei o que eu estava fazendo ali se não tinha estrutura alguma para levar um pequenino desses conosco. Elaborei, em seguida: “E como levar uma criança que simplesmente está bem em sua síndrome de Estocolmo?”

E quem me dá o direito de fazer isso? Só por que acho que é tudo grana, poder, maquinação e paganismo cristão, eu posso, então, mexer nas estranhas do coração alheio? E se for por amor...? E se o internato espiritual virou adoção afetiva? E se a libertação virou afeição? Quem conhece os caminhos do amor?
Sim, e se for expressão esdrúxula de nossa humanidade caótica, cheia de paradoxos? Pode ser que tudo seja um conjunto indecifrável de ignorância, óbvio analfabetismo, cultura pagã, cuidados pastorais, preocupações de maternagem, espírito colonizado, falta de informação e vontade de fazer as coisas certas, sem, contudo, sabê-lo!
E se invés de ser um seqüestro para enriquecer bolsos sacerdotais, aquilo tudo seja só o poder da miséria matando-os? E se ao contrário de astúcia, seja ingênuo messianismo, ânsia por libertar, arrancar a chaga, vencer o mal? E se não for paganismo, mas só falta de instrução no Evangelho?
E como ensiná-lo no Caminho sem colonizar sua própria jornada de fé, se seu espírito é tão brando e domável?


Creio, então, que cruzamos com um irmão confuso lutando com as armas do Império das Trevas nas trincheiras alheias.

Sim, por essa eu não esperava: Encontramos um filho da Paz do outro lado do campo de batalha.

Fomos ‘sequestrar’ uma criança, fomos sequestrados e sequestramos seu sequestrador!

O Samuel foi transferido para o Reino do Filho do Amor!

“O Amor tem feito coisas...”

Marcelo Quintela
Santos/SP
É Carnaval no Brasil/2010
Missão na Nigéria

OBS: Fomos atrás de um Favor de Deus e ganhamos muitos outros! Dois membros do “Nigerian Way to the Nations” visitarão o Pastor e seu refenzinho nos próximos dias, conforme instruções que passamos semana passada. O Mfon é o ... digamos... “motorista”.