Sexta-feira, 12 de novembro de 2010.

Nossa partida para a Nigéria estava se aproximando. Chegamos ao aeroporto as 20:00, o dia havia sido cheio de grandes milagres: a chegada do dinheiro ao Reino Unido, o visto da Ayla que saiu apenas horas antes da partida, e a passagem dela, que no dia anterior havíamos reservado pela internet por um valor muito acima do que havia sido pago individualmente pelo restante da equipe. Mas foi surpreendente que ao chegarmos para pagar, no aeroporto, não apenas o valor estava menor que o das outras passagens compradas com bastante antecedência, como também o atendente colocou a Ayla na mesma classe em que ia a equipe, sem que precisássemos pagar nenhuma diferença de valor. Além disso não tivemos nenhum problema com a troca de moeda: a atendente nos disse que caso voltássemos sem ter utilizado todo o dinheiro, ela o trocaria em moeda local para nós sem cobrar nenhuma taxa.






Sábado, 13 de novembro de 2010.

Nossa chegada à Nigéria foi às 6:30 da manhã, horário local. Tudo fluiu sem embaraços na imigração e nossas bagagens não precisaram ser abertas. Até o Leo passou liso!!! Na chegada o Leo foi providenciar a troca do dinheiro; na saída do aeroporto fomos abordados por dezenas de nigerianos oferecendo serviços de carregamento das bagagens, uma verdadeira confusão. Antes disso, também na saída, os três fiscais que checaram nossos tickets pediram propina para nos deixar passar com toda aquela bagagem sem que eles precisassem conferi-las. O Leo foi bem direto: “fiquem à vontade para conferir, porque temos bastante tempo hoje”. É assustador a forma quieta e silenciosa como eles abordam, sorrindo como se isso fosse algo comum (na verdade para eles é). Ao nosso redor em cada cantinho que parávamos, podíamos ver soldados fortemente armados. O Leo (fotógrafo) comentou que na primeira viagem, além de malas havia as pranchas, e foi bem difícil conseguir taxi que aceitasse tranportá-los.

Precisávamos trocar de aeroporto, pois iríamos para Calabar em um voo doméstico. O Leo providenciou dois carros, pois tínhamos muita bagagem: oito malas com doações.





Chegou a hora de almoçarmos – nossa primeira refeição na Nigéria –, momento bem engraçado e analítico, uma descoberta de sabores; e o mais interessante é que eram apenas  hamburgueres. Ficamos aguardando nosso voo nessa lanchonete por cerca de quatro horas – nosso próximo vôo estava previsto para uma da tarde. Durante esse tempo tivemos um momento juntos, orando e lendo a Palavra, após o que o Leo falou da nossa agenda para o dia seguinte. O aeroporto era bem parecido com as rodoviárias pequeninas do interior pobre do Brasil. Nessa viagem foi preciso pagar excesso de bagagem, o que já era previsto.

A chegada em Calabar aconteceu às 3:50 da tarde. Lá, a Diana, da SSN, havia providenciado uma van e pediu ao motorista que não parasse em nenhum lugar, pois tem acontecido muito sequestro de estrangeiros. A van nos levaria para EKET numa viagem de aproximadamente três horas, com direito a muita adrenalina: às sete e meia da noite o pneu do carro furou e, também, o motorista não se  recordava do caminho até à cidade; então, parávamos a cada vinte minutos para perguntar a direção. O Leo comprou frutas e bastante líquido, embora estivéssemos na estrada com o pneu furado e sem energia, a não ser a do farol dos carros. Estávamos numa estrada escura e perdidos, pois o motorista acreditava que o Leo sabia o caminho e o Leo acreditava que o motorista sabia o caminho. Apesar de tudo isso estávamos todos tranquilos. Nossa chegada em EKET foi às 8:30 da noite.

Domingo, 14 de novembro de 2010.





Amanheceu e seguimos rumo ao orfanato do CRARN para visitar os pequeninos de Jesus. Chegando lá, repetiu-se a cena das crianças correndo e sorrindo, uma risada de esperança misturada com alegria contida que finalmente podia ser demonstrada. Chegando à área central do orfanato onde havia algumas crianças brincando de bola – e outras espalhadas pelas áreas do orfanato –, observei que só havia um voluntário presente, aparentemente apenas por uma questão de segurança, pois elas estavam dispersas e sem nenhuma atividade. Comecei a conversar com o KUBIAT, voluntário do CRARN. Descobri que as crianças haviam tido a reunião de estudo bíblico pela manhã, e eu teria razões para estar alegre se não conhecesse as pessoas que têm ensinado as crianças; trata-se dos líderes da igreja que comparam as crianças com os porcos – os mesmos de quem falamos nas outras duas viagens.

Tiramos aquela manhã para curtir a criançada e deixar o Carlos e a Ayla conhecerem mais o orfanato. O Carlos parecia anestesiado, olhava ao redor e compartilhava ideias de coisas que poderiam ser feitas com as crianças; já a Ayla sumiu com as crianças. Enquanto eu conversava com o Kubiat, ouvi as crianças cantando uma música – eu amo as músicas africanas, e nada mais lindo que ouví-las cantando. Quando olhei para trás e vi que elas estavam em círculo cantando e dançando, a princípio achei que as crianças estavam ensinando a Ayla a dançar e a cantar a  música delas; então me aproximei para fazer um vídeo e quando cheguei mais perto vi que quem ensinava a música era a Ayla. Em breve irei disponibilizar o vídeo no youtube para que vocês possam compartilhar desse momento que foi tão especial.






Aproximadamente na hora do almoço o diretor do orfanato, o Sam, chegou e nos recebeu com muita alegria. Disse que sentia muito não ter tido a oportunidade de nos encontrar quando estivemos aqui em junho, enquanto ele estava na América. Então lhe disse que mais uma vez estaremos aqui por apenas uma semana e que precisávamos muito conversar com ele, compartilhar planos e projetos que temos para ajudar as crianças do orfanato. Ele nos informou que estava de saída e que estaria fora por cinco dias, mas que poderíamos nos encontrar quando ele voltasse. Pedi que conversássemos hoje mesmo, pois não poderíamos postergar mais uma vez. Por causa de um compromisso que ele já havia assumido, remarcamos nosso encontro para a tarde.

Nesse intervalo, fomos visitar o orfanato do James 1:27. Não levamos muito tempo para chegar lá; a distância entre os dois orfantos é bem pequena, mas eles parecem pertencer a realidades diferentes: enquanto no orfanato do CRARN as crianças passam a maior parte do tempo ociosas, sem nenhuma atividade, no orfanato do James as crianças, embora sejam oitenta, são disciplinadas e tão bem educadas quanto é possível ser em uma pequena família de quatro pessoas. Logo que chegamos, o pastor Evans e sua esposa, Janete, sempre muito simpáticos, foram logo me dizendo: “você prometeu que voltaria, e aqui está você”. Enquanto nos cumprimentávamos uma criança saiu do seu quarto e trouxe cadeiras para nos sentarmos, ficando ali por perto, quietinha.

Começamos a conversar e perguntei se ele ouvira falar de mais algum caso de “crianças bruxas”. Antes de me responder ele olhou para o menino quietinho (um albino), que era o seu filho, e pediu que fosse buscar a Vitoria. Então ele prosseguiu me contando: “Há três dias, a polícia esteve aqui me trazendo essa garotinha, que estava assustada e que mal podia ficar de pé, tamanha era sua desnutrição – o nome dela é Vitoria. Segundo a polícia, alguém flagrou uma mulher prestes a matar essa garotinha no meio do mato, e salvou a criança, chamando a polícia em seguida.

A Vitoria chegou e ficamos assustados com o corpinho dela, machucado e muito magrinho; o seu bracinho tinha a espessura do meu dedo”. A Ayla ficou por alguns segundos sem saber o que falar, o Carlos tinha um olhar de revolta e incompreensão, o Leo por um minuto esqueceu que era fotógrafo; e eu não pude evitar de pedir para o Carlos ligar a câmera, e mandei uma mensagem para vocês. Enquanto eu falava, o pastor mostrou o corpinho dela na câmera; ela estava sem roupinha embaixo do vestido. Foi uma cena muito forte. Vamos postar no youtube. Assim que conseguirmos carregar, disponibilizaremos o link.






Fui andando com o pastor e os meninos. Perguntei como ele (o Evans) estava, como iam as atividades no orfanato. O pastor Evans disse que estava “bem” mas que eles estavam com dificuldades para alimentar as oitenta crianças de que cuidam; e apesar de tudo estava também feliz, pois recentemente haviam conseguido um professor de francês – anseio dele que era do nosso conhecimento desde nossa segunda viagem, agora realizado. Perguntei a ele sobre uma bateria que eu havia visto agora na chegada, dentro do templo, e ele me respondeu que tinha sido uma doação. Perguntei se havia alguém que tocava, e ele me respondeu: “estou ensinado duas crianças a tocar”. Respondi: “Ah, então você toca”, e ele disse que não, mas que já que alguém precisava ensinar, ele se prontificou.

Entramos no salão pois ele queria me mostrar a bateria, que já estava bem velhinha mas que ainda servia para tocar para Jesus. Observei que na mesa dentro do salão havia alguns artigos de Israel, entre eles um shofar. Eu, o Leo, o Carlos e o pastor tentamos tocá-lo, mas só conseguimos babar. Outros artigos que estavam na mesa e que não vieram de Israel me chamaram a atenção: três revistas Jesus and Children – as nossas revistas. O Evans pegou uma delas e disse: “temos usado as suas revistas para ensinar nossas crianças”. Despedimo-nos e entreguei uma pequena oferta ao Evans para ajudá-lo com a alimentação. E mais uma vez disse que quero voltar para ajudá-los de forma mais apropriada.





Retornamos ao CRARN e tivemos a reunião com o Sam. Os assuntos abordados foram:

- Apresentação de um workshop com o objetivo de ensinar as crianças a fazer traballhos manuais e também com uso de máquinas.

- Possibilidade de vir alguém ajudar na administração e desenvolvimento de projetos junto às crianças do CRARN.

- Necessidade de computadores e material para a escola – conforme relato do Sam. E também sua aceitação em ter alguém caminhando com ele, que pudesse ajudá-lo a administrar o orfanato.

- Projeto de construção de uma cozinha, que já existe, mas para o que não há verba. Planos de também se construir uma área onde os computadores possam ser utilizados.

- Desejo que o Leo tem de trazer uma cantina para o orfanato (ele conhece uma pessoa que se dispôs a vir construir. O Sam disse que se sentia confortável com a idéia, e ansioso).

- Projeto de trazer duas psicólogas no ano que vem (2011) para desenvolver um trabalho com as crianças, a fim de descobrir quais são suas habilidades mais latentes e seguir investindo nessas habilidades.

-  Projeto de fazer uma biografia com a foto e a história de cada criança para que cada uma possa ter uma identidade mais rica em detalhes, a fim de que outras pessoas possam conhecê-las e ajudá-las.

- Utilização de material ecológico e recursos naturais nas construções da casa.

Enquanto conversávamos, percebemos que o Sam havia ligado o computador e estava ansioso para mostrar alguma coisa. Mal havíamos acabado de conversar e ele nos mostrou uma notícia chocante e recente, publicada três dias atrás no jornal do estado, que relata a perseguição que ele tem sofrido por parte de departamentos do governo e de outras pessoas que desejam fechar o orfanato (essa notícia será traduzida e disponibilizada no dossiê Nigéria). Ele desabafou: “os dias têm sido difíceis aqui; tenho vivido um verdadeiro pique-esconde, mas Deus tem dado graça, e a gente não  pode desistir da batalha”.

Saindo do orfanato fomos para ORON, conhecer a casa do Way to the Nations. Passamos na casa do Chief (chefe da vila) para revê-lo e também para que ele nos indicasse o endereço da casa. Chegando à sua casa, ele e sua esposa, a Ann, estavam terminando um ensaio da peça que busca instruir a comunidade sobre os absurdos da bruxaria. A peça simula um pai que expulsa sua filha de casa por acreditar que ela é bruxa. O tema de fundo da peça é expor como a concepção desse pai é ignorante. A peça é composta de doze atos; nós assistimos somente a dois. Após isso assistimos a uma apresentação de dança (street dance) e de uma canção, também por membros do grupo de teatro, tendo o mesmo tema como foco: a defesa das crianças.

Seguimos para conhecer a casa do caminho. Já era noite e precisamos de lanternas para ver a casa, pois não havia energia elétrica na rua. A casa é bem localizada, além de ficar bastante próxima à casa do Chief, o que me deixou bem confortável, pois podemos contar com sua assistência e presença. Assim que paramos em frente à casa, fiquei muito feliz pois ela é melhor do que eu imaginava: sem muros, com espaço amplo para reuniões e de fácil acesso à comunidade. O Jackson, nosso responsável na casa do caminho ali, nos recebeu com muita alegria; ele tem servido como pastor de crianças por anos aqui na Nigéria e agora estará conosco junto ao Caminho-Nigéria.

Segunda-feira, 15 de novembro de 2010.

Hoje o dia foi despendido com questões administrativas – nas viagens à Nigéria sempre é necessário fazer os registros nos departamentos administrativos e legais da cidade. Fomos primeiramente à imigração para cadastrar nossos passaportes, após o que seguimos para o departamento de polícia civil e militar, onde o chefe da polícia nos perguntou se não tínhamos nada para ele. Nós nos fizemos de bobos, como se não tivéssemos entendido que ele queria propina, e oferecemos  biscoitos de chocolate. As visitas aos departamentos de polícia foram repetitivas, cheias de idas e vindas; gastamos quase o dia inteiro com essas questões.

Era intuito do Leo ir hoje, em definitivo, para a  casa em ORON. No entanto, o Chief (chefe da Vila) não se sentiu confortável com a segurança que teríamos lá, pois ainda há muitas milícias ativas na região, e ORON é o local onde existem os maiores conflitos ligados à causa que nos traz à Nigéria. Ele nos pediu que não fôssemos, pois dormir lá nos deixaria vulneráveis. O grande problema de não irmos para a casa é que, ficando na cidade, teríamos um custo de hospedagem, o que significa gasto de um dinheiro que poderia ser canalizado para investimento na casa WN.

Todos os nigerianos que têm caminhado junto ao time tem demosntrado muita cautela, pois muito recentemente aconteceram questões sérias ligadas a acusação de crianças. Um fato que tem deixado todos aqui em alerta foi o sequestro de uma estrangeira há mais ou menos duas semanas, quando várias pessoas foram assassinadas. Isso trouxe medo e cautela a todos da região.

Durante a tarde fomos pesquisar material para a casa. Isso precisou ser feito indo a várias lojinhas, pois por sermos brancos o valor das coisas fica mais alto – mas quando eles nos viram pesquisando, os preços cairam substancialmente. E como precisávamos comprar o gerador e material para pintar o slogan do WN, gastamos o restante do nosso dia indo a inúmeros lugares.

No fim da tarde o Leo se encontrou com a Diana, na pensão, para conversarem sobre algumas questões do registro da casa WN e sobre outros assuntos ligados às crianças. Foi durante essa conversa que ficou mais claro que deveríamos registrar a casa do WN como entidade federal. A Diana nos indicou alguns caminhos (disse que o Chief de ORON se aposentou nessa área, sendo ele o mais indicado para nos auxiliar) e sugeriu também sobre a composição da diretoria do WN.

Foi frisado com a Diana o nosso desejo de que a casa WN em ORON seja usada para ajudar e hospedar, pelo tempo que for necessário, crianças em risco ou violentadas naquela localidade. Ela nos informou que a assistente social que está em ORON é muito cautelosa, e por conta disso a casa ainda não tem tido um fluxo tão intenso de crianças – a assistente se preocupa muito com as implicações legais. Diferente seria se ela estivesse lá.

Foi conversado com a Diana sobre as crianças que moram no estádio. Ela disse que essas crianças ainda não poderiam ser encaminhadas para a nossa casa. Há uma adolescente em especial, chamada Cecília, que está grávida, que vivia nas mesmas condições e tem estado em um quarto alugado pela SSN aqui na cidade de EKET. A Diana nos falou um pouco mais sobre a situação da Cecília – como tudo aconteceu, que não foi por estupro, embora ela tenha vivenciado isso no passado.

Outra questão importante foi falar com a Diana sobre o intento de ter alguém junto com o Sam na administração do CRARN. Ela mostrou-se contente, pois afirmou que embora o Sam seja muito especial ela não concorda muito com a motivação da equipe que o acompanha, deixando isso bem claro. Terminamos o dia organizando algumas doações, pois no dia seguinte iríamos dividir a equipe em dois grupos, sendo um para ORON e outro para cadastrar as crianças no orfanato do CRARN.


Ayla Ayres e Leo Santos
Akwa Ibom / Nigeria


Caminho Nações