Leia o Salmo 102

Ele diz que sente que os dias dele estão se desvanecendo como se fossem fumaça, como o fumo se desvanece, que os ossos dele estavam ardendo como se fossem ossos postos em uma fornalha a ponto de ficarem abrasados, que ele se sentia ferido como a erva, aquela ervazinha que você quebra e ela vai secando e murchando na mesma hora, ele diz: – Ferido como a erva secou-se o meu coração, por isso ele até se esquecia de comer o pão, porque o coração dele perdeu todo o vigor e o apetecimento pelo existir, pelo viver. Os meus ossos já se apegam à pele por causa do meu dolorido gemer.

Sou como o pelicano, que é uma ave dos lugares úmidos, molhados, dos pântanos, das beiras dos rios e lagos, dos litorais. No entanto ele diz: sou como pelicano fora do habitat, no meio do deserto, eu estou sem casa para minha alma, eu estou sem habitat para meu interior, para o meu ser, eu estou deslocado na vida.

Sou como a coruja das ruínas, e aqui ele evoca a imagem da coruja, que de fato muitas vezes gosta de morar nos lugares solitários e nas ruínas, para designar a sua solidão. De um lado ele se diz totalmente inadequado como um pelicano no deserto, de um outro lado ele diz: eu me sinto como uma coruja solitária das ruínas, sem ninguém, a coruja dos lugares ermos, inabitáveis, assim é a minha solidão. Não durmo, não tenho sono, não prego os olhos, estou inquieto e sou como o passarinho solitário nos telhados. Ele observa aquela imagem de um passarinho sozinho num pôr-do-sol desacompanhado, sem bando, sem macho, sem fêmea, apenas aquela silhueta no telhado e ele diz: – Ali estou eu contemplando a vastidão na mais profunda solidão enquanto me sinto insultado, enquanto a vida inteira parece conspirar contra mim e ele também, no verso 11 diz: como a sombra que declina, assim são os meus dias e eu vou secando como a relva.


Veja as imagens as quais ele recorre para auto designar-se nesse estado de espírito que ele se encontra em razão de tantas coisas que o cercavam, desde a opressão humana, desde o fato de que ele não estava bem com ele mesmo, como ele diz que estava sentindo como quem vivia sob a indignação da ira de Deus. Ele diz que tinha vivido dias nos quais ele havia sido elevado e depois, parecia que Deus o tinha cortado como uma bola num jogo de voley,  – E tu me abateste. Ele descreve a desesperança do estado dele concomitantemente com os desencontros humanos e com esse desassossego interior, com essa desconexão em relação a Deus, em relação ao próximo, em relação a ele mesmo de tal modo que ele se sentia como aquele que havia sido abatido no caminho como alguém que tinha saído andando com força e de súbito a sua força se esvaíra no meio do caminho ele estava cambaleando como quem estava prestes a desmaiar, como se a vida dele tivesse perdido o vigor pela metade e ele já não tivesse as energias interiores para prosseguir.

É assim que ele se sente, são metáforas as quais ele recorre.

Ele inicia dizendo: – É como se os meus ossos estivessem esbraseados numa fornalha, me sinto como uma erva quebrada e o fluxo da seiva foi interrompido, por isso não chega seiva de vida ao meu coração, até me esqueço de comer o pão. Sou como pelicano no deserto, me sinto fora do habitat. Sou como uma coruja das ruínas, eu não sou a coruja, mas eu me sinto como uma, na mais profunda solidão tendo que habitar as ruínas da minha existência em solidão profunda. Não consigo conciliar o sono e me percebo e me identifico com aqueles passarinhos sozinhos cuja silhueta de solitude eu enxergo nos telhados desacompanhadamente. É assim que eu me sinto, ó Deus, como uma sombra que declina e a minha vida, eu também a percebo, como se ela fosse um fumo que se desvanecesse como uma fumaça.

Então, veja as imagens que ele usa: é o fumo que se desvanesse, são os ossos ardentes na fornalha, é a ervazinha quebrada, é o pelicano no deserto, fora do habitat, fora do lugar molhado, é a coruja nas ruínas da própria existência dele, é o passarinho solitário no telhado, é aquele indivíduo que é como uma sombra que declina. Essas são imagens que ele usa para descrever o seu estado.

E eu gostaria que hoje você fizesse esse exercício de se identificar com imagens que bem expressassem o seu sentir,  o seu existir, o seu momento, o seu dia,  a sua estação, essa hora da sua vida. A gente vê isso como uma linguagem extremamente recorrente nos Salmos, como no Salmo 42, quando o salmista diz que ele suspirava por Deus e desfalecia por Deus como as cabras montesinhas da região sul de Israel resfolegavam pelas torrentes das águas que se encontram na região de Engede e ele diz: – Assim como a corça suspira pelas torrentes das águas, assim por Ti suspira a minha alma, ó Deus. Eu me sinto como aquela corça bramindo, procurando água. São muitas as imagens, às vezes elas são muito negativas. Às vezes a comparação é a uma serpente. Às vezes a comparação é a filhotes abandonados pela mãe.  Às vezes há comparação com leõezinhos deixados rosnando de fome numa gruta. São muitas as imagens que se vinculam à natureza, ao mundo animal. Aqui ele usa essa da erva quebradinha cujo fluxo da seiva foi interrompido ou como uma existência que se transformou subitamente em fumaça ou como alguém que vê a sua estrutura, como os próprios ossos se transformarem num brasume aceso, as coisas queimando como se os ossos estivessem na fornalha ou o pelicano, que é da água, habitando a região desértica, fora do seu habitat, sem adequação à vida, quando parece que nada a nossa volta tem a ver com a adequação da nossa própria existência.

Eu não sei como você está, mas eu gostaria que você tivesse a coragem de criar as suas metáforas. Não necessariamente de seguir a dos Salmos, mas descrever as suas metáforas hoje.

Talvez você queira dizer hoje eu me sinto como uma cascavel, venenosa, chacoalhante, ameaçando os outros; ou como uma égua no cio; ou como um cão raivoso, um pitbull descontrolado; ou como uma pombinha ferida, magoada, machucada; ou eu tenho me enxergado como um carcará, como um gavião predador que sempre chega para pegar, tomar e levar. Hoje eu me sinto como um vaso quebrado que para nada mais serve, a não ser que haja um milagre do ajuntamento dos cacos. Ou quem sabe você diga: – Hoje eu me sinto como um cântaro que se quebrou junto à fonte, eu já não sirvo para levar nem a minha própria água porque eu perdi o recurso da minha manutenção espiritual ou de qualquer que seja a natureza. Ou quem sabe:  – Eu me sinto como uma fonte de águas ilusórias, aquelas águas salobras, que quem dela prova não dessedenta a sua sede porque eu me sinto como quem não tem nada a dar; ou eu me sinto como uma miragem, as pessoas ficam olhando para mim de longe achando que podem encontrar alguma coisa, mas ao aproximarem-se atravessam-me porque em mim não há realidade a ser oferecida a ninguém; ou eu me sinto como uma figueira cheia de folhas, sem nenhum fruto dentro, eu me sinto como uma mentira ou eu me sinto como um sepulcro aberto, todo mundo que tem passado pela minha vida tropeça na minha própria morte; ou eu me sinto como uma sepultura invisível, as pessoas vêm e eu ofereço um abraço, quem corre para abraçar cai num buraco, esta tem sido a minha vida; ou eu me sinto num estado de tristeza tão profunda  que eu me sinto um poço de absinto.

Você é quem sabe como você pode ou possa estar se sentindo, mas eu gostaria que você usasse as metáforas que porventura viessem a surgir espontaneamente no seu coração, somente aquelas que apareçam e que ilustrem como verdade, como realidade, a expressão mais íntima do seu sentir hoje. Será que você pode fazer isso? Será que você tem a coragem de manifestar esse tipo de identificação real agora mesmo? De produzir um Salmo visceral com duas, três, no máximo quatro frases, todas elas relacionadas a explicar uma imagem com a qual você se identifique hoje. Eu me sinto como um útero vazio, eu me sinto como uma casa cheia de goteira não consigo oferecer abrigo para ninguém, nem para mim mesmo, eu me sinto como se eu fosse um espinheiro, um jardim de espinhos, quem quer que atravesse a minha vida se fere. Como é que você se sente? Qual é a imagem que hoje define o seu ser? É isto que eu quero pedir a você, é esse exercício de verdade, de humanidade rasgada, de poesia visceral e real que eu gostaria que você produzisse na presença de Deus e ante os seus próprios sentidos.  Eu quero que o programa de hoje reflita você por inteiro nas imagens que você produza, nas metáforas que brotem, que se projetem do seu sentir, do seu perceber, da sua autoanálise, do seu voltar-se sobre você mesmo, da sua capacidade de enxergar-se, às vezes uma imagem dessa diz mais do que milhares de descrições.

No curso da minha vida eu usei esse recurso com muita regularidade para mim mesmo. Como é que eu estou me sentindo hoje? Eu já me senti de tantos modos em tantos momentos e estações da vida. Já houveram ocasiões em que sendo homem eu me sentia como uma mãe sem seios, sem leite. Em outras ocasiões eu me senti como um ser cujos frutos foram arrancados de vez, estavam prontos para amadurecer e caírem em oferta à vida, mas foram arrancados. Já me senti como uma árvore dantes frondosa, cortada pela cepa, deixada apenas com as raízes no chão. Como eu já me senti como um pequeno rebento, renascendo de onde antes houvera um tronco frondoso que correspondia a uma grande árvore cheia de sombra e que tendo sido decepada agora colocava os primeiros rebentos. Eu já fiz tantas descrições para mim mesmo nos meus salmos pessoais e particulares diante de Deus e eles traduzem e interpretam estações inteiras da nossa vida para os nossos próprios sentidos. E, às vezes, marcá-las com essas imagens carregam um significado enorme porque depois a gente vê a mudança da graça de Deus operando em nós, na nossa vida, e você vê o que dantes fora uma coisa, mudar de natureza. Você vê a serpente peçonhenta cuja língua tagarela o mal e envenena a vida, se converter na dadivosidade de um cordeiro que entrega com sacrificialidade mansa a sua vida, que aprende o bem e desiste do mal. Você vê como a dinâmica do espírito vai mudando a sua própria natureza, mudando o seu estado. De miragem, você pode se reaperceber logo adiante como um manancial de águas vivas. De um pelicano no deserto, você pode vir a se enxergar mais adiante como um pelicano feliz nos alagadiços da vida, onde a adequação é total. De um passarinho solitário no telhado, você vai encontrar o pássaro em acasalamento, construindo o ninho com uma companheira, com um companheiro. De uma coruja nas ruínas, pode ser que você a reencontre nas florestas habitadas, na quietude das noites, mas num lugar de adequação. Enfim, marcar o momento com essas imagens tem um significado espiritual e psicológico poderoso quanto a revelar a realidade de como nós estamos e significa um marco extraordinário para a gente poder  lembrar um dia onde estávamos e de onde fomos tirados.

Minha gente querida, eu quero que vocês acreditem que esses salmos podem terminar diferente, como o Salmo 126 que começa com um momento de extrema celebração pela libertação de Deus, de repente, ele mergulha numa realidade do cotidiano e olha tudo que tem que ser restaurado, apesar de que se foi libertado e se vê como um deserto, sem nada, sem coisa alguma. De repente, ele imagina o milagre da graça de Deus no deserto e como até o deserto do Neguebe tem os seus dias de jardim, quando as chuvas caem e as sementinhas que não são nem percebidas entre os grãos de areia, de repente florescem e aparecem da noite para o dia, o deserto fica pintado de flores e de muitas cores, assim ele diz: – Restaura Senhor a nossa sorte como as torrentes no Neguebe. E aí ele se identifica com um semeador que vai ter que fazer o esforço da perseverança porque quem sai andando e chorando enquanto semeia, semeia as boas sementes, semeia as boas decisões, semeia as boas atitudes, semeia as visões proféticas do amor de Deus e das promessas de Deus para a vida, semeia a gratidão, semeia a compaixão, a misericórdia, semeia na própria mente os melhores pensamentos e semeia nas ações as melhores construções. Quem sai andando e ainda que chorando enquanto semeia, que use as próprias lágrimas para fazer irrigação gota a gota nas sementes boas que plante contra o momento. O momento é desértico para uns, é de impotência, de solidão, de invisibilidade, o momento é de inadequação, o  momento é como daquele que enxerga tanto potencial e parece que ninguém para aproveitar , o momento é de auto vitimização para outros que estão com muita pena de si mesmos, o que você tem que semear, se você tem dentro de você boas sementes, semeie agora com perseverança essas sementes sem nenhuma auto vitimização, com toda gratidão, para aqueles que olham para o próprio coração e enxergam uma natureza antitética, oposta em relação a tudo quanto entendam e sabem que seja vida, nesse caso, o que você tem é que crer que as naturezas podem mudar dramaticamente se a gente intervier nelas com decisões de fé. Elas mudam, nenhum de nós está fadado a carregar nenhum carma nesta vida, nenhum de nós. No Evangelho não existem carmas.

No Evangelho todas as coisas podem ser mudadas, porque se alguém está em Cristo, é uma nova criação. Não é uma nova criatura, como as nossas traduções preferem fazer. Originalmente é uma nova criação. Em Cristo começa um novo mundo, começa um gênesis da graça – haja luz onde só há trevas, apareçam porções secas habitáveis, tornem-se as áreas áridas em campos verdes, surjam as alimárias, os animais pululantes, encham-se os mares de enxame de peixes e criaturas viventes, povoem-se os céus com os entes que voam e um dia após o outro, um dia após o outro, a palavra de Deus vai criando, vai criando uma nova criação até que surge um novo homem, surge uma nova mulher, criados segundo Deus, segundo a verdade, segundo a justiça do Evangelho.

Se alguém se põe em Cristo e se pôr em Cristo não é dizer eu acredito segundo a carne que Jesus existiu, é eu acredito na graça de Deus para mim hoje, eu acredito em Jesus em mim agora, eu creio e não é por causa da minha adequação. A graça de Deus nunca encontrou ninguém, nem nada adequado a ela. No princípio criou Deus e o verbo  hebraico significa tirou do nada, arrancou de coisa nenhuma, da inexistência, até onde não havia, ele criou e às vezes o que é criado se catastrofiza. A Terra porém, diz o texto hebraico, ficou catastrófica e vazia. Como se uma primeira criação tivesse sido caotizada por algum processo de falência radical que nos precedeu no tempo, no espaço, provavelmente em milhões de anos. No princípio o Senhor tirou do nada e as coisas se tornaram uma criação, e aí passa um tempo e aquilo que havia sido uma primeira criação se catastrofizou e se tornou sem forma e vazia. E aí houve intervenção de Deus, mas Deus sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor que nos amou, estando nós mortos em nossos delitos e nossos pecados. Disse – Haja Luz – e houve luz. Haja vida – e a vida começou de novo, e os processos foram retomados.

Na existência, às vezes, são muitas as criações e as recriações de Deus na vida da gente. Deus não faz criações estáticas, as criações de Deus são vivas e dinâmicas, são processuais, são evolutivas, são transformadoras, fazem saltos de qualidade, frequentemente viajam da catástrofe ao impensavelmente sublime. E em Cristo nós temos todas as razões para pensar que é muito mais do que na própria criação natural e cósmica. Se na natureza cósmica das coisas é assim que Deus cria, na natureza espiritual do nosso universo pessoal é com muito mais intensidade de graça que ele vai refazendo todas as coisas. De modo que Paulo diz em Efésios 2.10, que se nós estamos em Cristo, eu já havia dito, nós somos uma nova criação, mas ele diz agora em Efésios 2.10 – Pois nós somos uma criação dEle, uma feitura, um fabrico permanente dEle, uma artesanalidade das mãos dEle todos os dias e nós vamos sendo criados todos os dias para novas e boas obras, as quais ele predeterminou como sentido para a nossa vida, como desígnio da nossa existência, cada uma delas para que nelas nós nos aperfeiçoemos e nelas nós andemos.

De modo que se você se sente hoje caotizado, catastrofizado ou aquele que se sente como um nada, como um ente das anti-atrações, como um buraco negro das absorções da existência que viram coisa nenhuma quando passam por aí, ou aquela que caminha pela rua e se sente como uma mulher imperceptível, ou aquele que se percebe como uma casa vazia, ou aquele que se sente como uma serpente venenosa, ou aquele que se identifica com o pior das naturezas, como um espinheiro ou como um cacto que para fora é só espinho, que retém água dentro e não consegue compartilhá-la com ninguém, nem relacionar-se com ninguém. Essas imagens servem, em todo contexto da escritura, para mostrar o milagre da graça de Deus. Eis que eu transformarei o deserto em manancial de águas. Onde crescia apenas a sarça, o espinheiro, ali haverá árvores frutíferas. Abundam essas expressões nos profetas. Aquele que andava como um cavalo no deserto, diz isaías, vai encontrar-se como um cavalo manso, bebendo água num manancial tranquilo das fontes da vida. São expressões que mostram que em Cristo as coisas antigas podem todas passar, as criações que se estragaram na nossa vida podem se fazer novas porque se alguém está em Cristo, é uma nova criação, as coisas antigas já passaram. Eis que tudo se fez novo.

Agora, preste atenção. Para que o novo que Deus já determinou que seja o novo em que nós andemos, caminhemos, perseveremos e que venha, de fato, moldar a nossa vida, é preciso que a gente tenha pela fé essa decisão que diz: – As coisas antigas já passaram, eis que tudo se fez novo. Ainda que você olhe para você agora mesmo e não consiga ver esse novo manifestado na sua vida, mas em Cristo a gente tem que ter esse olhar perspectivo, prospectivo, profético, projetador daquilo que pela fé a gente sabe que é o nosso desígnio para ser, em Deus. Que é o projeto da misericórdia de Deus para a nossa existência e não aceitarmos nenhum fatalismo, nenhuma natureza como sendo imutável. Em Cristo, todas as coisas podem ganhar outro sentido, podem se transformar, os barros podem se transformar em almas viventes. O caos pode dar lugar a harmonias poetizantes, lindas e indizíveis aos sentidos. Tudo pode se fazer novo mesmo.

A gente vê aquela imagem relacionada ao Rei Nabucodonosor, que era arrogante, e o livro de Daniel, no capítulo 4, nos diz que contra a arrogância dele veio a palavra de Deus que disse que se ele não se quebrantasse, Deus o cortaria, o deceparia, que ele era como uma árvore tão frondosa que sob os seus ramos aninhavam-se as aves de todo o céu, mas ele cresceu tanto que ficou tomado pela enfermidade da sua impáfia, da sua arrogância e o Senhor disse: Eu te fiz grande, não foste tu, mas se esta é a sua arrogância, eu te deceparei, porque Deus não tem nenhum problema em começar tudo de novo na vida da gente. A gente fica achando que Deus tem um compromisso em não desperdiçar nada. Deus não tem nenhum compromisso com o não desperdício. É isso que é quase impossível da gente entender pelas nossas lógicas do consumo. Será que Deus vai jogar fora todos esses anos que eu construí de coisas boas? Ele joga, foi o sentimento que eu tive com uma força esmagadora nos anos de 98, 99, 2000, 2001...Minha mulher lembra da quantidade enorme de vezes em que eu chorei, chorei e chorava muita mais para dentro do que para fora,  às vezes também para fora. E perguntando: Senhor, porque aqueles trinta e tantos anos de uma construção tão linda, tão maravilhosa, parece que o Senhor decidiu não aproveitar nada, nada... Parecia a anti-lógica de todas as coisas, mas em Cristo, as coisas antigas passam e eis que tudo se faz novo e Deus não tem compromisso de usar a nossa bagaça, ele não tem nenhum compromisso de aproveitar a nossa história. Ele é tão Deus que às vezes Ele aniquila a nossa história inteira para começar um mundo novo para que a glória seja dEle e não do homem.

Com o rei Nabucodonosor, ele deu ordem aos principados e potestades para que o cortassem, até que chegou um dia em que veio um anjo do céu e lhe falou: Nabucodonosor, tu serás tirado do meio dos filhos dos homens, cessará hoje a tua glória e tu te converterás como um animal do campo, as tuas unhas vão crescer como as das águias, os teus cabelos vão virar crinas, tu rastejarás como os animais e pastarás grama no chão, olharás para o céu e não entenderás o sentido de nada e não compreenderás a ti mesmo. Perderás o sentido do teu próprio eu até que tu te quebrantes e reconheças que há um só Deus no céu. E passaram-se sete anos sobre Nabucodonosor naquele estado até que o coração dele teve fagulhas de quebrantamento e ele se curvou diante de Deus e lhe deu glória e no mesmo dia voltou-lhe a luz, no mesmo dia voltou a sensibilidade, voltou a auto-percepção, no mesmo dia a lucidez o tomou e fez morada nele e ele escreveu o que você lê em Daniel, no capítulo 4, aquela oração de convocaçao a todos os povos do mundo a que reconhecessem que só o Senhor reinava, mas ele deixou só uma cepinha daquela árvore extraordinária, monumental, apenas uma cepa, foi daquela cepa que começou tudo de novo e veja que Deus deixou muito, às vezes Ele não deixa nem raíz, nem ramo, Ele replanta tudo, Ele refaz tudo outra vez. Como diz Deus, por meio do profeta Isaías: Eis que crio novos céus e nova terra e já não haverá nem memória das coisas passadas, já não haverá memória das lágrimas, nem das dores, nem das amarguras, nem das tristezas porque eu crio todas as coisas novas.

Seja qual seja a sua metáfora, não a estratifique, não a engesse, não a cristalize, não a ponha no formol, não a ponha na cristaleira, não a transforme em obra de arte de Salvador Dali numa exposição de catástrofe universal, ao contrário, creia de todo o seu coração que o Senhor repinta tudo, refaz tudo; que não existe nenhum quadro, por mais catastrófico que seja, nenhuma figura, nenhuma imagem, nenhum estado, nenhuma natureza que não possam ser dramaticamente alterados se o nosso coração simplesmente se puser na mão do oleiro, na mão do pintor que pinta um novo quadro, do artífice, do artista que faz uma nova estrutura, uma nova construção, do tapeceiro que muda os desenhos, todos, e faz uma nova apresentação da nossa vida. Agora, para isso, é preciso que a gente se entregue. É preciso que você pare de querer ser o artífice dos seus caprichos, tanto quanto é necessário que você cesse todo espírito de auto-vitimização, de pena de você mesmo, de coitadinho de mim, ninguém me vê, ninguém me enxerga, ninguém me sente.

Quem tem pena de si mesmo não receberá o poder e a força da compaixão divina. A compaixão de Deus alcança aqueles que se quebrantam, que viram de maneira contrita o ser na direção de Deus, não daqueles que se deixam tomar apenas de remorsos improdutivos e de auto-piedade que apenas lambe as feridas e não toma decisão nenhuma. A graça de Deus quer encontrar você na sua impotência, mas quer encontrar você com aquela impotência, paradoxalmente, que desenvolveu na impotência a mais poderosa de todas as potências humanas, que é a potência da entrega. O homem poderoso não é o que pode fazer. O homem e a mulher poderosos são os que conseguem ter o poder de se entregar, de se oferecer ao amor de Deus por inteiro, esse é o grande poder. E aí, o poder de Deus se aperfeiçoa na nossa fraqueza, quando na nossa total impotência, tamanha impotência que nasce em nós o paradoxo do maior de todos os poderes, que é o poder da entrega absoluta, dizendo: – Eu desisto de mim.

Mas você acha que isso é fácil? É aí que está o maior de todos os poderes, é o poder que entrega tudo a Deus, que se abandona no Senhor porque tudo em nós luta e resiste contra essa entrega mesmo na mais falimentar de todas as impotências, a gente quer agarrar algum resíduo de poder pessoal e não ser curado como resultado. Mas, se na sua falência total, você abraçar o poder da fraqueza e for tão grande a sua consciência de fraqueza que você desenvolva o poder da entrega absoluta, você vai ver como o poder de Deus vai reconstruir todas as coisas a partir dessa fraqueza. Por isso Paulo diz: – Eu me regozijo nas minhas próprias fraquezas, nas tribulações, nas injúrias, nas perseguições, na escassez, na fome, no abandono, nas rejeições, em todas as limitações, porque eu aprendi que quando eu sou fraco, aí é que eu sou forte porque o poder de Deus se aperfeiçoa é na fraqueza.

Então hoje, eu quero pedir a você para deixar a auto-piedade de lado, parar de ter compaixão de você mesmo e para pular de cabeça nesse rio da criação divina, nesse fluxo da palavra criadora e andar em obediência e fé. Você não vai precisar se espernear para que um mundo novo aconteça. O que você vai precisar fazer é deixar as coisas antigas para trás. Deixar hoje, elas podem até estar em volta de você ainda, mas você tem que descriá-las na sua mente e no seu coração: as coisas antigas já passaram para mim. Ainda que elas estejam saltitantes dizendo: ei, eu estou aqui. Mas você vai descriá-las no seu coração, pela fé. Elas já passaram. Eu agora vejo um novo céu e uma nova terra. Eu já vejo, pela fé, a nova criação. Está tudo catastrófico e vazio, mas há Deus. No princípio, Deus. Se em qualquer princípio, até no princípio dos não princípios há Deus, tudo principia, tudo recomeça e se isso é em Cristo, existe uma nova criação para você e não dê formas e não tente ser arquiteto coadjuvante do Criador. Deixe que ele dê as formas que ele deseja, que Ele faça como Ele queira, não ofereça projetos de acréscimo a sua existência. Deixe Ele fazer do jeito que Ele queira, não dê nenhuma idéia para Deus. Aceite os fatos da bondade da criação de Deus para a sua vida. Receba-os como um sacramento, como um dia de criação:  hoje foi a luz, hoje foi a porção seca, hoje foi a relva, vai aceitando, vai aceitando...

E para aqueles que se sentem tão sozinhos, pode ser que chegue aquela hora em que você vai dizer: – Ah...esta afinal é carne da minha carne e osso dos meus ossos, chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada.

A graça de Deus é infinitamente criativa, surpreendente, chocante para aqueles que em fé se entregam e dão o salto do grande poder da impotência que é dizer: eu me abandono nas tuas mãos e não reluto contra o teu desígnio, apenas aceito as designações de cada dia, de cada criação porque eis que tudo já é novo em Cristo e dia a dia vai se fazer e vai se manifestar novo na minha vida.

Devocional | Papo de Graça - 05/10/2011