MEU CÁLCULO RENAL... E AS PEDRAS NO CORAÇÃO

E vos darei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne!" 
Ezequiel 36.25-26.

Hoje, domingo de Páscoa, eu deveria estar em São Luiz do Maranhão.

Lá, ia me sentar à Mesa com uns quinhentos irmãos queridos, rever os que dentre eles já caminham conosco há um tempo; dar-lhes palavras de conforto e Esperança renovadas; mostrar que o deserto da desgraça africana que temos visitado pode vir a florir, e mesmo nossos desertos interiores mais cáusticos podem receber irrigação do Fluxo do Espírito.

Sei que teria vendido alguns muitos livros da Expedição que obrigou o "Caminho" a mapear becos e vielas arrancando crianças das patas da perversidade, do abuso, da manipulação na África Ocidental. Voltaria do Nordeste amanhã cedinho, repleto de alegria. Com o dinheiro dos livros ia desembaraçar rápido o embarque de mais de 100 grandes caixas de contribuições que Curitiba nos enviou, para daqui do Porto de Santos, um container deixar tudo no litoral nigeriano. Bicicletas, máquinas de costura, muitos brinquedos novos, roupas boas e uma diversidade de suprimentos.

Bom, mas não fui. Estou aqui, em casa. Na hora de embarcar para São Luiz eu estava dando entrada no Pronto-Socorro, curvado de dor, com uma pedra riscando com ódio as mucosas sensíveis de um rim judiado que eu tenho aqui há alguns anos.

Eu ia fazer tanta coisa, eu ia isso, eu ia aquilo... Mas “tinha uma pedra no meio do Caminho”! Uma pedrinha de 0,9 cm mudou nossos planos de uma hora para outra. E agora, eu estou recebendo os influxos do soro de alívio com o qual pretendia aliviar outros. Mas tudo está bem, tudo sob controle de Quem nunca perde o controle que nós mesmos nunca tivemos de coisa alguma!



Estou bem junto aos meus. E fico bem até o limite do suportável. Tratar essa dor no chão é, sem dúvida, mais seguro que no avião. Seria impossível não incomodar a aeronave inteira! Dor incomoda quem sente e quem está ao lado. E eu que não gosto de incomodar, vou ficando incomodado com tanta gente tentando me ajudar com uma infinidade de chás, poções, feitiços, medicações, segredos de suas próprias experiências de superação... Sou grato a todo mundo, por todo mundo...! Ter carinho por alguém não é fácil. A gente sempre acha que tem que fazer alguma coisa. Todo mundo é assim. Ser assim é normal. É horrível ver gente sofrendo...

Mas tem também aqueles que aproveitam para resolver algumas questões pendentes com a gente exatamente na hora em que estamos fragilizados e, possivelmente, lhes daremos ouvidos. Vou percebendo por esses dias como é fácil incomodar um monte de gente mesmo sem querer. Basta esperar e alguém, ao final, vai sempre me dizer:

“- Bom, vê se pará agora de ficar indo pra lá e pra cá!” Eita, o que uma coisa tem a ver com a outra? Essa pedra é o fardo de viajar? Ou essas viagens são um fardo para quem não saí do lugar pra N-A-D-A que não seja benefício próprio? Políticos, jogadores, músicos, executivos, todos viajam e ninguém vai aconselhar: “Pare de fazer shows pelo Brasil, tá. Isso ainda vai te dar pedra no rim”! Viajar para se mostrar é normal. Viajar para desaparecer é irreal...! Viajar para ganhar é normal. Viajar para se perder de amar é difícil de entender...!

“- Viu, doutor? Já pensou se isso acontece bem no meio da África? Vai parando com isso, tá, querido? Já pensou... Meu Deus!” – disse-me uma senhorinha que eu já sabia culpada por torrar seus milhões em viagens de luxo e solidão aos cassinos de Vegas várias vezes ao ano! Gente normal vai para Las Vegas, gente estúpida vai para o Campo! É assim! Esse é o nosso mundo! O Caio faz TV toda manhã, toda santa manhã!!! E eu já ouço: credo, pra quê? Que exagero, que isso, que aquilo. Ainda replico: Mas qual o problema: Você nem assiste toda manhã? Tem um monte de gente sendo abençoada e ele gosta do que faz!!! - Não! Tem que parar um pouquinho senão... sei lá!... Eu penso: A mesma pessoa não se incomoda com a Ana Maria Braga todas as manhãs. Já vi que o que ela não suporta é o desperdício da oportunidade da auto-promoção!


Todos querem meu bem, especialmente o bem que lhes faço quando não faço bem algum que lhes signifique um desperdício na direção de gente que não merece ou que não existe aos seus olhos ou corações.  “Oh, dor no rim? Vê se para um pouco de escrever, de ensinar” – ouço isso de quem não me lê nem me ouve, mas pensa que sou um Quixote da boa-intenção, e por isso preciso ser parado, barrado, para meu próprio “bem”!

Cuidado, meus amigos: Pedra no coração dá principalmente em gente boa! Gente ruim nem coração tem! Mas gente boa pode ir empedrando a consciência de tanto sedentarismo fraterno. A máxima é a mesma da falta de exercício físico: Quanto menos se faz, menos se quer fazer. E assim vamos ficando assim: pedras que vão tomando todo o coração, cálculos cardíacos, que crescem a ponto de insensibilizar o “órgão” feito para doar! É como no rim, quanto maior a pedra – aquela que feito um coral vai tomando a forma dos cálices renais – menor é a cólica, porque a bicha mal se mexe!

Fique sem praticar a generosidade pra você ver o que acontece: as pequenas voluntariedades, até essas 'coisa-à-toa', vão dando espaço a cada vez mais investimentos de tempo e recursos em suprir nosso próprio conforto, a ponto de um dia ninguém conseguir mais abrir mão de nada, e tudo se tornar tão essencial que DOAR-SE vira pecado! E quanto menos dói, menos dor. Um dia para de vez de doer. Dá a impressão que o mundo mudou, mas foi a gente que encolheu. Um dia para de vez de se sentir qualquer coisa que sinta! Vai virando um “sinto muito” pra lá, “sinto muito pra cá” e ninguém sentindo mais nada no coração de pedra!

Mas o amor é forte. O amor continuará incomodando. O amor incomoda muita gente!

Meu rim pode estar podre, mas meu coração ainda bate!

Eu estou imobilizado, mas a Graça de Deus na minha vida NÃO está infartada!

Eu estou quietinho, recolhido... Mas meus filhos, Leonardo e Lucas, estão exatamente agora, nessa hora, caminhando nas pontes estreitas das palafitas do Dique, no meio do mangue aqui em São Vicente, fazendo a Páscoa de centenas de crianças iguais a elas, visitando a áfrica que existe na esquina de quem não se nega a enxergar!

Meus filhos estão lá. Sei exatamente o que eles estão sentindo em cada troca humana possível. Sei o que eu estou plantando neles... Minha intenção, meus caros, não é das “melhores”! Sei que hoje eles vão sentir prazer e dor, e feito vício, isso vai circular dentro deles, prevenindo que as areias da insensibilidade lhes concrete o coração, que seguirá batendo forte, para sempre! Porque a eternidade se alimenta de amor!

Enquanto isso, alguns seguirão só estrategicamente incomodados. Daqui a pouco alguém já vai psicologizar: O Marcelo transferiu para os filhos a frustração de não ter embarcado e, agora, tadinhos dos meninos, estão com os pés sujos ao invés de estarem curtindo o domingo de Páscoa em meio aos coelhinhos. Puxa vida, que coisa!


Que Coisa!

Que coisa que a gente se tornou!

Marcelo Quintela
marcelo@caminhonacoes.com